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sábado, 24 de março de 2012

A carícia perdida

Sai-me dos dedos a carícia sem causa,
Sai-me dos dedos... No vento, ao passar,
A carícia que vaga sem destino nem fim,
A carícia perdida, quem a recolherá?
Posso amar esta noite com piedade infinita,
Posso amar ao primeiro que conseguir chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, andará... andará...
Se nos olhos te beijarem esta noite, viajante,
Se estremece os ramos um doce suspirar,
Se te aperta os dedos uma mão pequena
Que te toma e te deixa, que te engana e se vai.
Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
Se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
Ah, viajante, que tens como o céu os olhos,
No vento fundida, me reconhecerás?

Alfonsina Storni

Parto em um voo único

Parto em um voo único,
Simples, solitário, sem saber pousar.
Sigo feito valsa triste, bailando pra distante,
Querendo ficar.
Paro, pairo no horizonte, desço até a fonte,
Chego a mergulhar...
Morro de saudades, morro, sempre a cada instante,
Querendo voltar.
Parto em um voo único, simples, solitário, sem saber pousar.
Sou levada pelo vento, uma corrente forte;
Não sei controlar.
Sinto que nem mais respiro, estou em altitude, vou me machucar.
Sim, eu sei que estou voando, este voo triste, mas não sei voar...
Olho e vejo, nuvem negra, uma tempestade forte a se formar.
Sim, eu sei que estou voando, voo solitário sem saber voar,
vôo e bailo, feito valsa triste, querendo lá no fundo, ao ninho voltar.
Parto feito retirante, que vai pra distante, sem ter opção.
Voo o voo solitário, deixo feito penas, pedaços de mim, mortos pelo chão.

Luciane Macário

Meus fantasmas

Deixem-me em paz todos vocês que me atormentam
Que fazem-me cobranças veladas
Que brincam com as minhas culpas
Que julgam-me inepta e despreparada
Que pegam carona nas minhas carências
Que tiram partido dos meus temores
Que superestimam o que lhes convêm
Que subestimam o que ignoram
Que deitam sal em feridas expostas
Que enfraquecem-me com forças opostas
Que gotejam fel em esperanças parcas
Que aviltam-me a alma com profanas marcas
Que minam as bases daquilo que prezo
Que erigem edifícios sobre o que desprezo
Que vestem máscaras horrendas que não quero ver
Que retiram os sete véus do que é preciso esquecer
Que se instalam como símbolos múltiplos e insidiosos
Que aparecem como ratos nos meus pesadelos
Que insistem neste estranho jogo de dualidade
Que fazem parecer mentiras as minhas verdades
Deixem-me em paz todos vocês
Deixem-me em paz
Deixem
Apenas
PAZ.

Fátima Irene Pinto

[Artefato]

Da matéria prima ao arte-fato,
elaboramos gloriosos modos.
O que temos, transformamos.
O que somos é transformado.

Thereza Cristina Motta

Pássaro migrante

Quisera ser como o pássaro
que emigra com o seu bando
para lugares distantes
e as belas asas ruflando
em alegre revoada
busca novos horizontes.
Ele não viaja a esmo.
Tem direção definida
e busca, para si mesmo,
novas condições de vida.
Quisera qual esse pássaro,
alçar vôos decididos
Perseguir visões fantásticas
e sonhos adormecidos.

Maria Esther Tourinho

Principio e fim

Em 2005, quando comecei a apresentar complicações de saúde, a médica clínica que me acompanhava pelo SUS desde o diagnóstico, sugeriu que eu procurasse um especialista em infectologia.
Como eu conhecia a maioria deles, por ter ocupado uma posição de destaque no GAPA/RS, fiz uma escolha aleatória no rol de possibilidades oferecidas pelo meu convênio: optei por um que não conhecia, me atraiu pelo sobrenome diferente (de origem grega) e, na época, ocupava o cargo de coordenador municipal de aids.
Por algum acaso do destino, eu nunca tinha ouvido falar dele, já que o mesmo havia trabalhado no SAE municipal e atendia vários pacientes que freqüentavam o GAPA/RS – acho que foi mais ou menos como o caso de eu ter ido trabalhar como voluntária do GAPA/RS desconhecendo a minha sorologia....
Tivemos afinidade desde o primeiro momento e a nossa relação era de parceria, tendo em vista que eu tinha conhecimento técnico na área e precisava dele basicamente para carimbar os pedidos de exames e os formulários de medicação; é preciso considerar que quando adoeci, eu vinha de um período sem uso de antirretrovirais e ele prescreveu um esquema que usei com sucesso por 6 anos, até a falência renal, no ano passado. Em qualquer intercorrência clínica diversa, a orientação era sempre para que eu procurasse um especialista....
No início, tive dificuldades com a forma distinta que ele tem de se organizar: eu sou totalmente organizada (todos temos um pouco de Monk) e não consigo imaginar como as pessoas se encontram no caos; com o passar do tempo, eu continuava gerenciando o meu tratamento mesmo que as minhas informações teóricas tenham ficado defasadas e a sensação era de que eu “dominava” a relação.
Comecei a me preocupar efetivamente com o assunto quando precisei iniciar o esquema de resgate terapêutico e ele demorou 15 dias para preencher um formulário que eu necessitava levar na farmácia para a avaliação da liberação dos novos medicamentos.
Poucas semanas depois, ele entrou em férias; quando estava no período do seu retorno ao trabalho, eu comecei a apresentar os sintomas da esofagite, que foi diagnosticada e tratada pela minha reumatologista, por causa da omissão dele. O papel dele na minha 1ª infecção oportunista, foi o de garantir um leito naquele hospital horrível e transcrever a prescrição feita pela reumatologista. Durante o longo período de internação, por falta de autonomia, senti-me insegura com a forma que ele tinha de gerenciar o meu tratamento.
Eu era acompanhada regularmente por 2 médicos: um que eu mandava e a outra que eu obedecia... estava insatisfeita com o tratamento dele, acho que expirou o prazo de validade da nossa relação, por incompatibilidade de gênios.
É preciso reconhecer que ele sempre esteve com os telefones à disposição para acolher as minhas demandas.
Expondo as minhas preocupações para o meu anjo guardião, ela empenhou-se em encontrar um novo profissional para me acompanhar. Como médica, ela tinha a clareza de que eu precisava de um suporte clínico maior e sempre esteve comigo, enquanto ‘clínica geral’, mesmo com a poliangeíte em remissão.
Agendei consulta com a primeira indicação dela e acredito que terei sorte de ser melhor assistida, além do quê, ela está no Hospital da PUC, onde também eu encontro a Tatiana (e é perto da minha casa...)
Na próxima semana, terei consulta com o meu ex-infectologista para comunicar o rompimento de nossa relação médico-paciente; como toda relação que chega ao fim, creio que será um fato estressante mas, tenho mais é que pensar em meu bem-estar e enfrentar a vida de frente, como sempre fiz!
p.s. depois da consulta, faço uma observação de como tudo ocorreu.